sábado, 22 de janeiro de 2011

" A febre dos toiros "

Gostaria de dar conta de uma entrevista que foi publicada em 12 de Fevereiro de 1971 no "Diário Popular" e que foi conduzida pelo jornalista Ângelo Granja.
A entrevista foi feita a João Serra, um dos melhores Forcados que passou pelas arenas na altura.
A transcrição textual foi feita do livro "Riachos Terra do Ribatejo", de António Chora Barroso.

A introdução dessa entrevista começa assim:
"Era uma vez uma homenagem. Que não chegou a ser. João Serra gostaria de ter tido essa homenagem? Pois gostaria. E já lha prometeram: toureiros, empresários, críticos. Mas de promessas tem o velho Serra um baú cheio.
E outro de dificuldades...
De alguém terei de esperar o favor de ler para João Serra o que dele vai escrito. Cego não é, o velho Serra, mas de letras não topa nem uma, ainda que sejam do tamanho do Palácio dos Fidalgos que ele evoca, ou dos toiros que ele pegou.Mas não serei eu a chamar-lhe analfabeto, porque assim se chama também aos ignorastes - E venho de receber a lição que o velho Serra me deu...
"Foi mesmo aqui em Riachos, que eu nasci, em 1901, no dia 14 do mês de Natal. Sessenta e nove anos já feitos, quase todos de trabalho e nenhum de escola..."
- Começou a trabalhar muito cedo, não ?
- Nos toiros ou na vida ?
- Na vida.
- Tinha p"rai doze anos.
"Andava a dar água a cura. Os homens curavam as vinhas e eu como era noveco, andava, com uma corda, a acartar água p"ra cura.
Depois pelos catorze anos, comecei a cavar vinha e tudo e comecei a ganhar pelo preço dos homens.
- Quanto era ?
- Nesse tempo, se estou bem lembrado, eram sete tostões por dia a seco. A bucha era por conta: almoço ai pelas 10 horas e o jantar ás três, logo seguido da sesta, que ia até ás cinco, por causa do calor.
A febre dos toiros - Vejo nos homens muitas marcas das terras da aldeia de Riachos: ele, homem talhado a golpes de enxada, de meninice enxofrada na água das curas e no pó das sachas, partiu a espinha na ultima poda e despediu-se, à força, dos campos onde ganhou o pão, semeando-o, defrontando, agora a míngua desse pão por escassez de providências.
Riachos também quase se despediu das lavouras, deu o salto para a industria.
O velho Serra andou nos toiros, Riachos também (vão, ver, ali, no Campo Pequeno, a placa dedicada aos Forcados Riachenses que inauguraram a praça), mas hoje, de gado bravo Riachos apenas lhe sentirá o cheiro, vindo mais das bandas da lezíria e são mansos os toiros que por lá andam, de cornos enfiados na canga e são leiteira as vacas que por lá estão, muitas já acurraladas nas exigências do dever e do haver das vacarias.
O velho Serra, hoje também, sente o cheiro das bostas e sente saudades dos toiros do seu tempo. E olhando-se para ele, pequeno e encarquilhado, rugoso e seco, a gente não acredita que ele foi um dos grandes Forcados Portugueses; a gente não acredita que, por mil vezes ele se encaracolou nos cornos dos bois bravos;a gente não acredita que ele pegou toiros em pontas e à porta do curro, nos tempos heróicos das toiradas; a gente não acredita que aquele corpo tenha lá dentro a febre dos toiros!
- Essa febre pelos toiros apareceu quando tinha os meus quinze anos. por aí. Comecei na brincadeira, nas vacadas e nas tentas. Queria tourear. E bandarilhava e pegava. Fazia finca-pé para as bandarilhas, as vacas vinham e eu não fugia. Atirava os braços para diante, espetava-lhes as bandarilhas e depois agarrava-as pelos cornos.
Até que pensei; "ná eu devo é ser Forcado!" Já estava farto de tourear à "pai Paulino" como nesse tempo se dizia dos que faziam como eu.".
Tem boa memória, o velho Serra, sobretudo, pareceu-me, quando arranja alguém para a conversa dos toiros.Por isso me deixei estar a ouvi-lo.
"Fui ali ao Entroncamento falar com o José Duarte Coelho, que estava nisso das toiradas. Entrei por ali a dentro, de barrete na cabeça, e disse-lhe que queria ser Forcado. Ele olhou para mim e pôs-se a rir". "É pá, vai-te embora! Tu és muito novo, não serves para Forcado! disse-me ele. E mandou-me p"ras vacadas; disse-me para continuar nas brincadeiras. Mas não desisti. Havia uma corrida na Barquinha no Domingo a seguir e resolvi lá ir.
Fui a correr quase todo o caminho p"ra chegar a horas. E ainda antes de tirar bilhete fiquei-me a olhar para o grupo de Forcados que era de Vila Franca, o do Manuel Burrico. E senti cá uma vontade de ser dos dele (ainda são uns quilómetros, de Riachos à Barquinha, não são ?
- Umas léguas lá isso são...
- E foi a pé ?
- Andava com a cegueira dos toiros, homem! Ia a pé p"ra todo o lado, ver as corridas; cheguei a ir a pé antes disso até Santarém vossemecê sabe lá como era essa cegueira!...
" E fiquei a ver a corrida junto ao muro, chegado à trincheira até que o toiro derrotou o grupo todo: O Manuel Burrico, o irmão dele, o Inácio Burrico e o Edmundo Oliveira, foram até parar à enfermaria eles não eram mesmo capazes de pegar o toiro e eu comecei a pedir autorização ao inteligente p"ra ir lá abaixo.
Mas ele disse "O rapaz está parvo, não querem lá ver o raio do rapaz!...
E acabei mesmo por saltar p"ra arena, mas o inteligente mandou-me buscar com a guarda.
Aí o povo começou a pedir para eu ir lá abaixo. Aproveitei a oportunidade e saltei outra vez p"ra arena.
Tirei o casaco de ganga e encostei-me à teia. O inteligente mandou sair os capotes e os Forcados. E eu a ver o toiro, ainda um bocado longe de mim, a pensar como havia de fazer aquilo sozinho.
Então o Teodoro Gonçalves, que ainda toureava, começou a bater com o capote nas tábuas, o toiro virou-se, deu comigo e eu fui p"ra ele e peguei. O boi aos derrotes, mas eu é que nunca mais o largava.
Andei ali a atravessar a praça de lado a lado, sem a ajuda dos Forcados e dos toureiros, até que o povo resolveu saltar lá abaixo e acudiu-me. E disseram que nunca tinham visto uma pega como aquela! Começaram a ralhar com os Forcados, a dizer-lhes que eu é que tinha ganho o dinheiro - mas eles lá acabaram a corrida. E no fim trouxeram-me da praça da Barquinha até lá abaixo ao chafariz sempre aos ombros. E deram-me dinheiro.
Mas os Forcados andavam depois à minha procura, p"ra me bater mas uns fidalgos que deram por isso, agarraram em mim meteram-me no carro e trouxeram-me p"rós Riachos. Foi assim que comecei a ser Forcado.
O velho Serra continuou a falar-me, da sua inclusão no grupo da Moita, sempre com ele, rapazito de 16 anos incompletos mas bem curtidos, a abrir as corridas com as suas pegas de caras. Depois passou a ser chamado para os Forcados de Lisboa, com o Matias o António Pilé, o Carlos Maneta e outros, mais tarde passou ele a ser o cabo; homem dali homem acolá, formou o seu grupo, mas continuou a ser solicitado para outras corridas.
Houve empresas, disse-me o velho Serra que chegaram a contratá-lo separadamente para que fosse ele, independentemente dos Forcados do cartel, a fazer as pegas de caras, chegou a pegar todos os toiros de cada corrida "umas vezes eles não pegavam, por medo, e eu lá me oferecia para voltar aos cornos dos bois.
Outras vezes eram eles que me encostavam, com inveja de mim ou lá o que era, mas num oficio daqueles não valia a pena ganhar inveja: era um oficio de apanhar porrada!...
- (E quando você ia para a pega eles ajudavam-no ?
- Qual quê! Ás vezes, nem faziam de conta, mas quando mal ajudado era quando fazia as pegas mais rijas, mas é preciso a gente conhecer os toiros.
- P"ra mais naquele tempo com bois mal intencionados com 3 e 4 corridas e de quinhentos e tal quilos !
- Hoje a respeito de sangue de toiros, está tudo muito estragado.
- Até um dia, já eu estava velho, tinha p"raí uns 42 anos o Torres, cá dos Riachos, pediu-me para eu o levar a uma corrida, e lá arranjei mais homens e fomos à Barquinha. Depois o Torres disse-me que o melhor era ele ficar a ser o cabo porque eu já estava velho e até não sabia ler e foi assim que nasceu o grupo de Riachos, mas de todo o modo ainda nessa altura continuei a ser eu a abrir as corridas...
- Olhe lá, João Serra lembra-se da sua ultima pega ?
- Lembro, pois ! Foi em Vila Franca...
- Quantos anos tinha ?
- Já tinha 49 anos feitos ia p"ros 50. O grupo ainda ia anunciado como o de Riachos...
- Mas de Riachos era só eu e o Torres. E como de toda a maneira era eu que tinha que pegar os toiros, pouco depois de sair o grupo acabou e depois de Vila Franca eles ainda quiseram que fosse à Póvoa mas já não fui. Foi o Faia no meu lugar...
Mas João Serra não abandonou a festa: está nela como espectador sempre que pode.
Lá me ajeito, quando posso p"ra ver umas corrida à borla.
Umas vezes entro com o David Ribeiro Teles, noutras aproveito o Souto Barreiros; antigamente ia com o Rhodes Sérgio... Enfim como não tenho dinheiro para poder ver as corridas, preciso de me encostar aos toureiros e Forcados.
E o velho Serra já ganhou dinheiro com os toiros. Talvez que a corrida mais rendosa haja sido aquela em que se atirou para a arena como espontâneo na Barquinha.
Ai o povo começou a atirar dinheiro, na altura. Depois como Forcado profissional comecei por ganhar cem escudos e mais as passagens.
Quando deixei de pegar ganhava 300 escudos também com as passagens.
Mas é claro, eu não vivia só disso: continuei a trabalhar no campo, depois passei para uma fábrica de tomate e acabei por dar cabo da espinha quando andava na poda e caí de uma oliveira.
- Quantas pegas fez você ?
- Assim ao certo não sei. Mas foram mais de novecentas...deve andar perto das mil:
- E apanhou muita pancada dos toiros ?
- Ai jesus, fartei-me de apanhar pancada ! uma vez, em Coruche até fiquei muito mal, por causa de um boi mal-intencionado que eles tinham deixado p"ros curiosos, dizendo que havia uma libra em oiro para quem pegasse. Como ninguém lá foi, atirei-me eu p"ra cabeça do bicho e peguei-o mas levei muita bordoada e depois não me deram a libra. Mas aquilo era um toiro ! tinha poder de um boi pai de vacas !...
O velho Serra contou-me ainda que pegou toiros à saída do curro. Apenas por desafio à sua valentia. Pegou toiros em pontas ainda para demonstrar que das pegas sabia ele. Arriscou quase tudo em troca de nada, partiu braços e pernas, deu cabo de tendões e de costelas, mas haveria de ser a poda de uma oliveira a inutilizá-lo para o trabalho "medo a gente tem sempre, mas eu cá não sei se sou valente ou não. A verdade é que não sei lá muito bem o que é isso de valentia. E não será por ter pegado toiros que vou dizer à gente que valentia é cá comigo.
O que é preciso é termos consciência tranquila e estarmos seguros do caminho que pisamos. Era isso que eu sentia quando ficava diante dos toiros, e não era medo que eles me faziam sentir era respeito !
- João Serra você tem medo de Deus ?
- Porquê ? Nunca lhe fiz mal !...
E das almas do outro mundo ?
- Bem, lá que sinto uns arrepios quando passo, à noite defronte de um cemitério, isso sinto. Mas não sei que arrepios são esses, não sei se isso é que é medo. Afinal eu não sei o que são almas do outro mundo nunca as vi, mas o tal arrepio, esse já tenho sentido e não gosto nada de dizer isso.
Ao fim ao cabo a gente deve ter medo é dos homens vivos, esses é que me têm assustado. Contra esse medo, é que a gente às vezes não adianta lutar. São eles qu nos fazem mal, mesmo sem saberem.
São os homens vivos que se esqueceram que eu existo depois de terem andado por ai a bater-me palmas e a acarretar comigo aos ombros.
Mas eu estou p"raqui já velho, não presto para nada e que remédio tenho se não ficar com as migalhas que a caixa me dá.
Os novos aficionados já não sabem quem eu sou, os velhos esses já não precisam de se lembrar de mim. As festas de homenagem são sempre p"rós outros, nunca são p"rá gente !
Dos vivos, dos vivos é que é de ter medo.
Mas cá por mim lá vou vivendo.
                                         ( E o entrevistador acaba com uma nota final)
O velho Serra está a fazer a sua pega derradeira : Quer pagar a vida de caras, mas os anos não perdoam não é homens vivos ?

1 comentário:

  1. Muito obrigado pela partilha deste texto. É sempre bom ler as memórias do grande João Serra!

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